O ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, emitiu um contundente alerta sobre as recentes notícias envolvendo oficiais do Exército, incluindo um general reformado, suspeitos de planejar o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Segundo ele, os eventos remetem à frase de Karl Marx: “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Celso de Mello relacionou o suposto plano golpista ao episódio conhecido como “Revolta dos Sargentos”, ocorrido em 1963. Na ocasião, militares amotinados detiveram e sequestraram o ministro Victor Nunes Leal, do STF, levando-o à Base Aérea de Brasília. O episódio, embora contido, foi um prenúncio da ruptura institucional que culminaria no golpe militar de 1964.
Para o ex-ministro, há um vínculo histórico entre esses eventos. Ele aponta que “insurgências de natureza pretoriana” fragilizam a democracia e ameaçam os fundamentos do poder civil. Celso de Mello também reforçou que o respeito à Constituição é um limite intransponível, cabendo às Forças Armadas exercer funções estritamente institucionais.
Democracia
O plano revelado de assassinato de líderes civis e judiciais evidencia, segundo Celso, uma tentativa de instaurar um regime autoritário baseado em práticas incompatíveis com o Estado democrático de direito. Ele destacou que o poder militar deve estar subordinado ao civil e que “qualquer desvio desse princípio conduz à dissolução da República democrática”.
Citando o estudioso Samuel P. Huntington, Celso de Mello alertou para os perigos do pretorianismo – o envolvimento de militares na política –, seja ele de caráter oligárquico, radical ou de massa. Esse tipo de intervenção, segundo ele, “descaracteriza a legitimidade do poder civil e fragiliza as instituições democráticas”.
Paralelos históricos
A referência ao golpe de 1964 serve como advertência para o presente. Durante o regime militar, o Brasil viveu um período de repressão às liberdades individuais e de limitação do dissenso político. Para Celso de Mello, essa experiência deve ser vista como um alerta permanente contra o retorno de práticas autoritárias. Ele ressalta que intervenções militares, quando vitoriosas, “reduzem ou eliminam o espaço institucional reservado ao dissenso, com danos irreversíveis ao sistema democrático”.
Para o ex-ministro, os eventos atuais são uma repetição farsesca das tragédias passadas. Ele enfatizou que “o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa, no regime democrático, limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado e as próprias Forças Armadas”.
O discurso de Celso de Mello ecoa a importância de fortalecer as instituições democráticas e rechaçar qualquer tentativa de ruptura. Em tempos de tensão política, sua análise é um chamado à vigilância e à defesa do Estado de direito, reafirmando que a democracia não deve ser subjugada por interesses autoritários ou militares.
Veja o texto de Celso de Mello sobre o Golpe
Plano de assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes: a História repetindo-se como farsa
A notícia sobre a prisão de oficiais do Exército, inclusive a de um general reformado, supostamente envolvidos em gravíssimo e sórdido plano sedicioso (e criminoso) que objetivava, no contexto de um pretendido golpe de Estado, assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, permite afirmar, quanto a tal evento, que é a História repetindo-se como “farsa”, para relembrar a frase de Karl Marx, logo no primeiro parágrafo de seu conhecido trabalho “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” (1852)!
Marx, em seu “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, inicia a sua obra proferindo, logo no primeiro parágrafo, a sua célebre frase:
“Hegel observa (…) que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (…)”!
Cabe rememorar, bem por isso, neste ponto, evento ocorrido em Brasília, em 12 de setembro de 1963, uma quinta-feira.
Refiro-me ao episódio que ficou conhecido como “A Revolta dos Sargentos” e em cujo contexto sobrevieram a detenção e o sequestro de um ministro do Supremo Tribunal Federal por militares da FAB e da Marinha (sargentos e cabos amotinados), que o conduziram até a Base Aérea de Brasília (o sequestro ocorreu no “Trevo da Sarah” ou em suas proximidades).
O magistrado arbitrariamente detido e criminosamente sequestrado foi o ministro Victor Nunes Leal, que se dirigia ao Supremo Tribunal Federal para um encontro com o seu então presidente, o ministro Lafayette de Andrada!
O ministro Victor Nunes Leal ficou detido na Base Aérea de Brasília durante uma hora e meia (das 10h às 11h30) .
Assim que libertado, retornou à sua residência, para, em seguida, dirigir-se ao STF, onde, em sessão especialmente convocada pelo ministro Lafayette de Andrada, relatou os fatos que culminaram com sua detenção e sequestro (v. DJU, ed. de 13/9/1963, pgs. 3009/3010).
Pronunciaram-se, em referida sessão plenária, além do seu presidente, também o ministro Ribeiro da Costa, o dr. Cândido de Oliveira Neto, procurador-geral da República , e o dr. Esdras Gueiros, presidente do Conselho Seccional da OAB/DF, que censuraram duramente o comportamento criminoso de referidos militares.
O registro dessa sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, realizada no próprio dia do sequestro do ministro Victor Nunes Leal (12/9/1963), consta de publicação oficial feita no Diário da Justiça da União, de 13 de setembro de 1963, que contém o relato do Ministro Victor Nunes Leal, seguido dos pronunciamentos do PGR e do Conselho Seccional da OAB/DF.
É importante destacar que o ministro Ribeiro da Costa, em mencionada sessão plenária do STF (12/9/1963), pronunciou discurso que, meses depois, quando houve o ominoso golpe de Estado de 1964, instaurador da ditadura militar que se abateu sobre nosso país e que destruiu a ordem democrática até então vigente, mostrou-se profético, pois, ao defender a decisão da Suprema Corte proferida contra os militares que queriam exercer cargos políticos, afirmou, com inteira razão, que a função institucional das Forças Armadas é outra, e que incentivar (e permitir) o envolvimento de militares com a atividade política poderia fazer com que as Forças Armadas absurdamente culminassem por se sobrepor às leis e à Constituição da República!
Disse, então, o ministro Ribeiro da Costa :
“Nessas condições, ao invés de contar o país com Forças Armadas unidas, aptas a agir com a presteza e a energia necessárias em dados momentos, quando a ordem nacional estiver em perigo ou sob ameaça, o que acontecerá, então, é que esses elementos, que são numerosíssimos, e indispensáveis, trarão para o seio das Forças Armadas a cizânia, a divisão, a incompreensão, a indisciplina, pretendendo sobrepor-se, como agora o fizeram, não só às leis e à Constituição, mas aos seus superiores hierárquicos”!
Cabe sempre advertir que o poder militar está sujeito, historicamente, nas democracias constitucionais, ao poder civil , cabendo-lhe, unicamente, as estritas funções institucionais que lhe foram atribuídas pela Constituição!!!
O poder castrense, que NÃO dispõe de atribuição moderadora NEM de função arbitral que lhe permita resolver – como se fosse uma anômala (e estranha) instância de superposição – eventuais conflitos entre as instituições civis do Estado, há de submeter-se, por inteiro e incondicionalmente, à autoridade suprema da Constituição, sob pena de a República democrática – sob cuja égide vivemos – dissolver-se, esmagada pelo peso e deslegitimada pelo estigma de uma estratocracia desestabilizadora da ordem democrática e opressora das liberdades e franquias individuais!!!
A necessidade do controle civil sobre as Forças Armadas – advertem os estudiosos da matéria (como Eliézer Rizzo de Oliveira, “Democracia e Defesa Nacional: A criação do Ministério de Defesa na Presidência de FHC”, São Paulo, 2005, pág. 84) – busca definir parâmetros e implementar os seguintes objetivos:
“a) O comando inquestionável das Forças Armadas pelo chefe do Poder Executivo;
b) Garantir a imparcialidade política das Forças Armadas;
c) Estabelecer uma estrutura de ordenamento legal das Forças Armadas que as submeta [aos princípios essenciais do] Estado democrático;
d) Qualquer decisão quanto ao emprego do poder militar deve ter origem exclusiva nas decisões políticas [das autoridades civis]; e
e) Reafirmar o caráter nacional das Forças Armadas.”
Os fatos hoje noticiados referentes ao alegado envolvimento de altas patentes militares revelam um quadro deplorável de periclitação da ordem democrática e de perversão da ética do poder e do direito!
Em situações tão graves assim, ressurge fundado temor de que se desenhem na intimidade do aparelho castrense movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico, pretorianismo radical ou pretorianismo de massa (Samuel P. Huntington, “Pretorianismo e Decadência Política”, 1969, Yale University Press).
A nossa própria experiência histórica revela-nos – e também nos adverte – que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente (República de Weimar), descaracterizam a legitimidade do poder civil e fragilizam as instituições democráticas !
Impõe-se repelir, por isso mesmo, qualquer manifestação de um pretorianismo oligárquico que pretenda sufocar e dominar, com grave lesão à ordem democrática, as instituiçōes da República !
Já se distanciam no tempo histórico os dias sombrios que recaíram sobre o processo democrático em nosso país, em momento declinante das liberdades fundamentais, quando a vontade hegemônica dos curadores militares do regime político então instaurado sufocou, de modo irresistível e ditatorial, o exercício do poder civil.
É preciso ressaltar que a experiência concreta a que se submeteu o Brasil no período de vigência do regime de exceção (1964/1985) constitui, para esta e para as próximas gerações, marcante advertência que não pode ser ignorada: as intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais.
Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania.
Tudo isso é inaceitável porque o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa, no regime democrático, limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado e as próprias Forças Armadas!
Enfim, parece-me haver, entre a detenção e o sequestro, em 1963, perpetrados por militares amotinados contra o ministro Victor Nunes Leal, do STF, e o noticiado plano, agora revelado, de oficiais militares de assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, um indissociável vínculo histórico, um indisfarçável liame entre a tragédia e a farsa…
(CELSO DE MELLO, ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, 1997-1999)