O Ministério Público Federal (MPF) solicitou à Justiça Federal em Belo Horizonte (MG) a concessão de tutela de urgência para garantir a adoção de medidas que resguardem a saúde da população do Município de Colatina (ES), evitando-se o consumo de água fora dos padrões de potabilidade. A cidade capixaba está localizada na Bacia do Rio Doce, que teve as águas contaminadas por rejeitos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em novembro de 2015.
O pedido foi feito em ação civil pública que tramitou perante a Vara Federal de Colatina e, desde março deste ano, está sob análise da 4ª Vara Federal de BH, por declínio de competência do Juízo original. Ao remeter o caso para a Justiça mineira, o juiz também levantou o sigilo de laudo pericial que apontava a contaminação da água fornecida à população pelo Serviço Colatinense de Meio Ambiente e Saneamento Ambiental (Sanear).
Na manifestação enviada à Justiça no último dia 5, o MPF reiterou os pedidos feitos nas alegações finais do processo. Entre eles, a suspensão da captação de água do Rio Doce para distribuição no município, pois ela teria se tornado imprópria para o consumo após o rompimento da barragem de Fundão e a chegada da pluma de rejeitos ao estado capixaba. Laudos anexados à ação registraram a presença de metais pesados na água como mercúrio, arsênio, manganês, chumbo, cádmio, cobre, vanádio e alumínio, em quantidades superiores aos padrões de segurança estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e pela Portaria 2.914/2011, do Ministério da Saúde.
A petição do Ministério Público destaca trechos da perícia realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, (Fiocruz) em parceria com o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), que demonstram a contaminação da água que abastece a cidade de Colatina. A poluição foi comprovada a partir de elementos associados diretamente ao derramamento de rejeitos, como o aumento expressivo da turbidez da água, a alta concentração de cianeto livre e o volume de chumbo total.
Com base nas amostras colhidas até o ano de 2018, os estudos demonstraram que, embora o nível de alguns parâmetros tenha diminuído com o passar do tempo, a comparação com o período anterior à passagem da pluma apresentou diversos parâmetros aumentados, como alumínio dissolvido, cádmio total, níquel total e turbidez, que não retornaram às condições anteriores.
De acordo com os peritos, os resultados sugerem que parte desses poluentes ficou retida na calha do rio, sendo ressuspendidos em momentos determinados, como no aumento da vazão fluvial. “Da mesma forma, confirmou-se aumento dos níveis de cobre dissolvido, cor verdadeira, ferro dissolvido, manganês total, níquel total e turbidez no período de agosto/2017 a setembro/2018 com relação ao período anterior à passagem da pluma”, registra o laudo.
Uso do Tanfloc
A manifestação do MPF ressalta que “a conduta da Samarco não somente poluiu de maneira intensa e perene o Rio Doce, como agravou de forma altamente relevante outros impactos já existentes, perpetuando-os”. Isso porque, segundo o laudo pericial, a empresa forneceu ao Serviço Colatinense de Saneamento, para tratamento e limpeza da água, produtos coagulantes e floculantes, em especial, o Tanfloc SG, que acabou por implicar novo risco à saúde humana.
O Tanfloc SG é um coagulante auxiliar utilizado no tratamento de águas em geral e de efluentes industriais. O uso do produto químico teria sido sugerido e fornecido pela Samarco para municípios afetados pelo desastre.
De acordo com o laudo, nas Estações de Tratamento de Água de Colatina, a dosagem utilizada do Tanfloc não cumpriu o previsto na norma ABNT NBR 15.784/2014, “em quadro de incalculável perigo”. Segundo os peritos, o produto pode causar perda de peso e neoplasias, sendo classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, do inglês International Agency for Research on Cancer) como carcinogênico, tumorigênico e teratogênico. “Tais malefícios são causados pelos resíduos de formaldeído, usado como uns dos reagentes químicos no processo de fabricação do floculante, sendo normal que o processo de reação química não seja completo, deixando resquícios dos reagentes”, assevera o documento.
Os testes apontaram que todas as dosagens testadas do Tanfloc SG foram maiores do que a dosagem máxima recomendada de 10 mg/l. Ainda segundo o laudo pericial, “a utilização do Tanfloc para o tratamento da água no Município de Colatina ocorreu completamente a esmo, sem a adoção de quaisquer providências de controle da qualidade da água após o tratamento para consumo humano, o que pode explicar a utilização de dosagens tão elevadas do produto na maior parte do período de aplicação”.
Associações de moradores
Os riscos à saúde humana potencialmente causados pelo uso do Tanfloc SG também vêm sendo discutidos em outra ação civil pública, ajuizada por associações de moradores locais e de produtores rurais e artesão do Espírito Santo, em novembro de 2021. Os proponentes relatam que, após o desastre, muitos municípios que estavam impossibilitados de captar a água do Rio Doce para consumo humano passaram a ser assediados pela Samarco, que forneceu e recomendou o uso do Tanfloc.
Por isso pleiteiam, entre outros pedidos, que as mineradoras Samarco, Vale e BHP sejam condenadas a arcar solidariamente com todos os ônus, despesas e investimentos necessários para viabilizar que todas as cidades impactadas que fazem a captação de água no Rio Doce passem a ter outra fonte de captação de água pra consumo humano. Pedem também que as empresas sejam obrigadas a custear e a providenciar, por meio de caminhões-pipa, o abastecimento das cidades na exata proporção do consumo atual médio da população, além de fornecer três litros de água mineral para cada cidadão de tais localidades.
Ao se manifestar nesse processo, o Ministério Público Federal propõe a busca de uma solução consensual para a questão, por meio de audiência marcada especialmente para esse fim. O procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, que acompanha as ações do caso Samarco na 4ª Vara Federal de Belo Horizonte, entende que o espaço mais adequado para a discussão sobre os danos gerados à população colatinense pelo fornecimento de água contaminada é exatamente na ação civil proposta pelas associações locais.
Falta de segurança
Para o MPF, diante de todos os fatos apontados pelos peritos, não foram adotadas medidas suficientes para assegurar a segurança da água consumida pela população de Colatina, não tendo havido adequado monitoramento das substâncias, que apresentam risco toxicológico reconhecido internacionalmente, nem a criação de fontes alternativas de captação ou aprimoramento dos mecanismos de tratamento já existentes. Além disso, faltou a comunicação de risco transparente e informativa à população sobre as condições da água fornecida, passível de auditagem independente pela comunidade científica.
Diante desse cenário, o Ministério Público Federal pede que a Justiça obrigue o Sanear a interromper a distribuição de água fora dos padrões de potabilidade definidos pelo Conama e pelo Ministério da Saúde. Requer, ainda, a conclusão e implantação dos projetos de captação alternativa ao Rio Doce, suficientes para o abastecimento do município com água não contaminada bem como a adequação de todas as estações de tratamento a fim de assegurar condições operacionais efetivas e seguras para o cuidado com a água.
Pede-se também que a União e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) cumpram com sua obrigação de fiscalizar devidamente a qualidade da água e os serviços prestados pelo Sanear em Colatina. Além disso, a Prefeitura de Colatina, com aporte financeiro da empresa Samarco, deve adotar medidas de acompanhamento da saúde da população, visando a detecção precoce e a prevenção de doenças relacionadas à exposição e ao consumo da água contaminada.
Íntegras das manifestações do MPF
Processo 1063803-74.2023.4.06.3800
Processo 1074305-81.2021.4.01.3800