Quando falamos de investimentos financeiros, a bolsa é de longe a instituição mais associada com o processo, visto que permite que qualquer pessoa se torne sócia das maiores empresas do Brasil e do mundo. Entretanto, ironicamente, a bolsa não é nem de longe o investimento favorito da nossa população, que tem uma preferência enorme pela renda fixa.
A grande questão, contudo, é que pouquíssimas pessoas – incluindo profissionais de mercado – parecem entender a como a renda fixa realmente funciona. Nesse texto, proponho discutir isso um pouco melhor, para que você, investidor ou investidora, consiga saber os verdadeiros riscos ao qual se expõe ao alocar nesses produtos.
Para começarmos, é preciso entender que um investimento em renda fixa é simplesmente um empréstimo. Por mais simples que isso pareça, é muito comum que essa característica seja completamente ignorada, e a reação das pessoas seja de tratar a renda fixa como uma forma garantida de receber o juro contratado, na data combinada.
Para a possível decepção de muita gente, esse não é o caso, visto que só existe um juro porque existe um risco, e na renda fixa, esse risco é de que você não receba de volta o dinheiro que havia emprestado. Logo, quanto maior o tamanho do juro oferecido por esse investimento, maior a chance de um calote.
A esse respeito, vale lembrar mesmo que você invista exclusivamente nos papéis que oferecem o menor risco de crédito dentro do mercado nacional, você sempre terá que assumir o risco de um potencial calote. Simplesmente, porque isso é uma parte necessária da relação de risco-retorno.
Entretanto, existe uma grande diferença entre como as coisas se desenrolam após um problema de crédito dessa natureza, em que tudo dependerá do tipo de investimento em questão. Especificamente, estamos falando da diferença entre emissões soberanas (Tesouro Nacional), emissões bancárias (CDB, LCI e LCA) e crédito privado (debêntures, CRI e CRA).
Os três caminhos após os calotes
Em linhas gerais, quando você investe em um título de risco soberano, como o Tesouro Selic ou Tesouro IPCA+, o risco de crédito é considerado o menor possível dentro da economia nacional. Isso porque é muito improvável que um país de calote na sua própria população, e porque o país pode simplesmente emitir moeda corrente para quitar essas dívidas. Por isso, consideraremos que esse não é um cenário relevante para esse texto.
As coisas são bem diferentes quando você investe numa emissão bancária (CDB, LCI ou LCA), onde você empresta seu dinheiro diretamente para bancos, que vão desde gigantes como Itaú (ITUB4) e Banco do Brasil (BBAS3) até pequenas instituições, que representam um grau de risco muito mais alto em comparação. Em todos esses casos, o que acontece caso alguma dessas instituições declare falência?
Colocado de forma bem simples, dado que o valor a receber não seja superior a R$ 250 mil na data da falência, você receberá um reembolso tanto do valor inicial quanto dos juros contratados que incidiram até aquele momento. O processo, que fica sob responsabilidade do Fundo Garantidor dos Créditos (FGC), é bem simples e rápido, com o valor sendo ressarcido em torno de duas semanas.
Como o FGC é mantido por contribuição dos próprios bancos que atuam no Brasil, o órgão é considerado extremamente confiável, incluindo num cenário catastrófico onde existam dezenas de bancos quebrando ao mesmo tempo. Por isso, uma vez que seja respeitado o limite de até R$ 250 mil por instituição emissora, com ressarcimento total de R$ 1 milhão a cada quatro anos, o risco financeiro do calote de um banco é praticamente nulo.
O grande problema se dá quando tratamos de emissões de crédito privado, ou debêntures, CRI e CRA. Sem entrar em maiores detalhes, ao investir numa debênture você faz um empréstimo a uma empresa; nos CRI e CRA você faz uma operação similar, emprestando dinheiro a empresas relacionadas com aos ramos imobiliário (CRI) ou do agronegócio (CRA).
O desafio da recuperação judicial (RJ)
Enquanto um calote por parte do Brasil é considerado uma possibilidade remota, e bancos contam com uma proteção bem robusta do FGC, empresas em geral não oferecem nenhuma garantia de quitação da dívida em caso de bancarrota. Isso porque caso a empresa não consiga mais honrar suas dívidas, ela decretará aquilo conhecido como um processo de recuperação judicial (RJ).
Aqui as coisas se tornam realmente imprevisíveis porque, na prática, você é que entrará em recuperação judicial, para buscar de volta o valor emprestado. Na prática, não há como saber como se dará esse processo, quanto ou se algo será recuperado, muito menos quando ou como esses recursos ficarão disponíveis. Portanto, o risco associado com um CRI, CRA ou debênture, é gigantesco em comparação com o Tesouro Nacional ou um CDB, LCI ou LCA.
A título de ilustração, pessoas que investiram em debêntures da Light, num valor acima de R$ 30 mil, tiveram que fazer algumas escolhas bem difíceis após a empresa ter decretado falência. Basicamente, você poderia escolher entre receber 35% do valor em ações da empresa e a tentativa da empresa em pagar o restante a IPCA + 5% a.a. ao longo de cinco anos. Se não quisesse as ações, teria que aceitar um juro de IPCA + 3% a.a. pago ao longo de 13 anos.
Caso a pessoa não escolha nenhuma das duas (desagradáveis) opções, pela razão que for, teria que amargar o calote e receber 20% do valor da dívida corrigida pelo IPCA, ao longo de vinte anos.
Embora tenhamos tratado aqui do caso de Light, é bom lembrar várias outras empresas quebraram em 2023, cada uma dando origem a um processo distinto de recuperação judicial. Isso inclui Americanas (AMER3), onde houve fraude contábil, as livrarias Saraiva e Cultura, a varejista Marisa (AMAR3), entre outras.
Existem boas razões para investir em CRI/CRA/Debêntures?
Diante do tamanho do risco envolvido com operações em CRI, CRA e debênture, o que explica sua presença maciça nas carteiras de investidores(as) brasileiros(as)? A resposta é um pouco complexa, e envolve tocar em duas questões um pouco delicadas, sendo a falta de conhecimento financeiro adequado e uma relação marcada pelo conflito de interesses.
No que diz respeito a falta de conhecimento, que afeta inclusive profissionais do mercado financeiro, é muito comum que todas as pessoas sequer ponderem o risco de calote ao oferecer ou recomendar um ativo de renda fixa. O resultado é que, na maioria das vezes, renuncia-se a um ativo com proteção do FGC para investir num que possui risco de RJ sem sequer receber um juro mais alto por isso.
Infelizmente, isso se combina a uma relação problemática quando a pessoa responsável por oferecer o aconselhamento recebe remunerações diferentes em função do produto que está recomendando. Em outras palavras, quanto maior o risco de calote do produto, maior será a comissão envolvida, fazendo com que os CDB, LCI e LCA, que possuem proteção contra calotes, sejam muito menos comuns que CRI, CRA e debêntures, que não tem proteção, mas oferecem comissões bem mais altas.
Vale deixar bastante claro que, na maioria das vezes, isso não acontece porque profissionais estão buscando prejudicar clientes de forma proposital, mas sim porque o modelo no qual atuam não oferece muita alternativa. Isto porque a recomendação de ativos mais seguros praticamente não oferece remuneração, obrigando profissionais a terem que equilibrar o bem-estar da carteira, sua capacidade de receberem pelo seu trabalho.
Vale lembrar, no entanto, que esse não é um problema dentro da Portfel, pois como consultoria, renunciamos a toda e qualquer comissão oferecida por produtos, tanto ao zerarmos tais taxas quanto devolvendo eventuais ganhos na forma de cashback. Isso explica, ainda, por que insistimos tanto para que nossa base de clientes se desfaça de ativos como CRI, CRA ou debêntures.