Olá leitor, hoje gostaria de compartilhar com você um pouco da minha preocupação com o tema que acabou virando uma palestra ministrada no PROCON-SP na semana passada, intitulada: “Socialização pelo Consumo na Infância e Adolescência: possíveis impactos sobre o superendividamento familiar”.
Na minha percepção, o provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia para educar uma criança”, deveria ser a condição primeira para a construção de uma sociedade mais ética e humana.
Olhar para a infância precisa sair do discurso emocionado e bonito e passar a ser uma prática de todos nós – quer estejamos diretamente envolvidos com ela, como é o caso da família e da escola, ou indiretamente – que seja capaz de nortear nossa conduta.
Além disso, é preciso entender que em algum momento de nossas vidas, quando nós já pudermos muito pouco, é na aldeia governada pelas nossas crianças e jovens de hoje que vamos passar o que nos restará de vida.
Nós temos uma tendência a não olhar para questões sociais quando elas não nos atingem diretamente. E a infância é uma dessas questões. Se as duas instituições mais diretamente ligadas aos pequenos ficam num jogo de empurra para saber de quem é a responsabilidade pela educação de seus próprios filhos e alunos, imagine o cidadão que “não tem nada a ver com isso”.
Me lembro de um grande professor que tive na faculdade, Prof. Bataglia, que uma vez nos disse, lá em meados da década de 80, que se o Brasil não pensasse urgentemente numa redistribuição de renda, nós iríamos ver nossos filhos sendo mortos na esquina de casa por causa de um par de tênis. O que foi uma previsão, hoje faz parte do nosso cotidiano.
Se tivéssemos entendido aquela questão social como um problema de todos nós, talvez não estivéssemos vivendo essa realidade violenta hoje.
E por que olhar para a infância também do ponto de vista do consumo e do endividamento?
Simples, porque as relações de consumo passaram a tomar o lugar das relações humanas e sociais. Não se pode mais olhar para a infância e adolescência sem levar em conta essa questão, já que eles estreiam como consumidores num cenário que em nada favorece a formação humana e autônoma.
E que cenário é esse? Um cenário que, do meu ponto de vista, inclui cinco grandes aspectos:
1. Inauguração do Consumo Emocional a partir da década de 80
O chamado consumo emocional é aquele em que o consumidor busca não só o status, mas vê o consumo como ferramenta para construir sua imagem. Trocando em miúdos, é o consumir para ser e para se relacionar com o outro.
Este relacionar-se com o outro tendo como afinidade quase exclusiva o padrão de consumo é o que se chama de socialização pelo consumo.
2. Família essencialmente provedora
Quando a família começa a deixar a sua função de educadora e de transmissora de valores e começa a migrar para uma função de mera provedora, através de um processo de “terceirização” da educação dos filhos, o consumo ganha uma dimensão perigosa dentro das relações familiares e começa a marcar presença nos mais diversos momentos e a substituir manifestações de carinho, atenção, orgulho e amor.
3. Escola omissa
Vou tentar não me estender muito sobre esse tópico, porque ele sozinho daria uma série de vários artigos, mas vamos lá. O que vejo por aí é uma escola que tenta abordar assuntos como sustentabilidade, ecologia, educação para o consumo, mas de uma forma absolutamente superficial.
Uma escola que se limita a pedir garrafas PET para virar vasinho ou chocalho, mas que continua a pedir uma lista de material que beira à indecência. Uma escola que não percebe que o tal “dia do brinquedo” funciona mais como um desfile de bonecas e brinquedos “último tipo” do que um meio de exercitar a socialização.
Uma escola que, por ingenuidade ou negligência, expõe seus alunos a campanhas publicitárias travestidas de campanhas educativas. Só a título de curiosidade, este foi o assunto que mais causou polêmica ao final da palestra. Quando o público foi convidado a dar suas opiniões sobre o assunto, era visível a insatisfação daquelas pessoas com a escola.
4. Publicidade Infantil
Aqui também é difícil não escrever um tratado, então vou resumir da seguinte forma: enquanto a família e a escola ficam empurrando a criança para lá e para cá, a publicidade infantil os acolhe da forma mais voraz possível.
Enquanto estamos ocupados fazendo dinheiro para garantir a melhor escola, o melhor entretenimento, o melhor tênis, o melhor, o melhor, o melhor, os grandes especialistas em marketing infantil lançam suas “bíblias”:
- “Marketing to the New Superconsumer: Mom & Kid” (Coffey & Livingston 2005), algo como “Vendendo para o Novo Super Consumidor: mãe & filho”;
- “The Great Tween Buying Machine: get your share of the multi-billion-dollar tween market” (Siegel, Coffey, Livingston 2004), algo como “A super máquina de comprar pré-adolescente: garanta a sua fatia desse mercado multi- bilionário”;
- “Creating the Ever-Cool: a marketer’s guide to a kid’s heart” (Del Vecchio 1997), algo como “Criando o ‘legal’ para sempre: um guia de marketing para atingir o coração de uma criança”.
Nossas crianças e jovens não podem ser tratados como super consumidores, ou como máquinas de comprar e se alguém tem que tocar o coração delas somos nós: a família, a escola e a sociedade!
5. Cultura do Crédito
E para fechar com chave-de-ouro: nosso velho conhecido, o crédito! Diante dessa conjuntura de fatores, uma coisa que poderia “frear” o consumismo seria a insuficiência de renda. Mas nem com isso podemos contar.
Dada a oferta abundante de crédito dos últimos anos, a proliferação dos parcelamentos em detrimento dos pagamentos à vista e da nossa inabilidade em dizer “Não”, como bem colocou a querida Bernadette Vilhena aqui em seu último artigo “Falar ‘Não’ para seus filhos incomoda você?”, não fica difícil imaginar que as famílias, especialmente as de renda mais baixas, são as que mais sofrem com essa pressão dos filhos por consumo.
Entretanto, do ponto de vista social e humano, as consequências do consumismo atingem todas as classes.
Uma pessoa que consome por razões emocionais e que por isso mesmo nunca estará satisfeita, uma pessoa que aprendeu que suas relações familiares e sociais dependem basicamente do seu padrão de consumo, que aprendeu que a renda não é fator limitador para garantir seus desejos de consumo, que se deixa levar pelos apelos da publicidade, provavelmente achará que é seu direito usar a aldeia para atingir seus objetivos e por isso mesmo nunca se verá como parte dela.
Eu não quero isso nem para o meu filho, nem para a minha aldeia. Você quer?
Foto girl holding shopping, Shutterstock.