O Brasil tem potencial para se tornar nos próximos anos um grande “player” global no mercado de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), com pesos-pesados do setor apostando que o país contribuirá com um inadiável aumento de oferta em meio a metas ambiciosas de descarbonização.
Gigantes da indústria, como Boeing e Embraer, acreditam que o país cumprirá um papel importante na produção de SAF à medida que a demanda por parte das companhias aéreas avança, diversos executivos disseram à Reuters.
A indústria de aviação tem como meta atingir emissões líquidas de carbono zero em 2050, em um processo que dependerá muito do desenvolvimento e aumento da produção de SAF, obtido a partir de materiais como óleos vegetais e resíduos.
“Para que as metas de 2050 sejam cumpridas, o Brasil terá que fazer parte disso”, afirmou em entrevista o presidente da Boeing para América Latina e Caribe, Landon Loomis, destacando a posição do país como potência agrícola e segundo maior produtor de biocombustíveis do mundo.
Embora mudanças tecnológicas radicais sejam consideradas fundamentais para a redução das emissões na aviação, o setor tem mantido o foco em combustíveis compatíveis com os motores já utilizados pelas aeronaves, como SAF e alternativas sintéticas.
“O SAF é a grande solução, pelo menos que a gente enxerga agora”, disse à Reuters o presidente da Embraer, Francisco Gomes Neto. “E certamente o Brasil, na nossa opinião, pode ser — e acho que vai ser — um grande protagonista dessa economia sustentável.”
A Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA) estima que o uso de SAF poderá representar 65% de todos os esforços da indústria para que a meta de emissões líquidas zero até 2050 seja cumprida.
Até lá, uma capacidade produtiva de 450 bilhões de litros por ano será necessária, um salto gigantesco em relação aos 300 milhões de litros produzidos em 2022 — quando a fabricação triplicou em relação ao ano anterior, mas ainda totalizou apenas 0,1% de todo o combustível de aviação consumido no mundo.
No curto prazo, a produção global pode atingir 5 bilhões de litros até 2025 e 30 bilhões até 2030, e o Brasil pode em breve contribuir com uma grande parcela desse crescimento, fazendo uso de soluções como “alcohol-to-jetfuel”, rota pela qual o etanol é convertido em combustível de aviação.
A Boeing e a Roundtable on Sustainable Biomaterials (RSB) estimam que o país tenha atualmente matéria-prima suficiente para produzir até 9 bilhões de litros de SAF por ano, a maior parte com base em resíduos de cana-de-açúcar. Isso seria o suficiente para atender à demanda local e ainda sobrariam 25% para exportações.
A empresa norte-americana recentemente inaugurou um centro de tecnologia em São José dos Campos (SP) e anunciou uma parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no desenvolvimento de um banco de dados sobre insumos para SAF.
“É uma oportunidade enorme”, disse Loomis, observando que o país pode se aproveitar de infraestruturas e expertise já existentes após outros programas bem sucedidos de biocombustíveis no passado.
Entre eles está o Pro Álcool, iniciativa da década de 1970 para o uso de etanol que culminou na possibilidade de que a maior parte da frota de veículos do país hoje possa rodar 100% a etanol. Além disso, o Brasil é também um grande produtor de biodiesel à base de óleo de soja.
Incentivos
Parte do sucesso na implementação do SAF dependerá de incentivos governamentais e metas claras, segundo membros do setor.
“O que é necessário — e nisso o Brasil, em nossa opinião, é e será cada vez mais um líder — são mandatos e legislações feitos para ser atingidos pela indústria, e então a introdução de incentivos de mercado para construção de capacidade em SAF”, afirmou à Reuters o presidente da Boeing Global, Brendan Nelson.
Em setembro, o Brasil propôs como parte do projeto de lei do Combustível do Futuro medidas para aumentar produção e consumo de SAF no país, preenchendo uma lacuna em termos de políticas públicas.
O projeto visa implementar uma indústria de SAF local ao mesmo tempo em que obriga as companhias aéreas a utilizar o combustível, estabelecendo como meta uma redução de emissões no setor de 10% até 2037 por meio do consumo de SAF, com um aumento gradual partindo de 1% em 2027.
O governo também mira a possibilidade de que áreas degradadas sejam recuperadas para a futura produção de combustível sustentável de aviação.
“O mundo esperava de nós um mandato para SAF, para descarbonização da matriz do setor aéreo”, disse o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, na apresentação do projeto. “O mundo conhece a potencialidade que nós temos em termos de matéria-prima do SAF.”
Gomes Neto, da Embraer, afirmou que o assunto também tem sido debatido pelo grupo de transição energética do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o chamado “Conselhão”, do qual ele é membro.
“A gente está discutindo isso com os potenciais fabricantes, como que isso pode ser feito, o que precisa com o apoio do governo. E o governo quer ajudar”, disse o executivo. “Esse projeto de lei que foi anunciado em setembro é um passo importante nesse sentido.”
Investimentos
Grandes investimentos também serão necessários, mas menos do que se outras possíveis soluções de descarbonização não ligadas diretamente aos motores já utilizados pelo setor — como eletricidade e hidrogênio — fossem escaladas para cumprir a maior parte do trabalho.
A empresa brasileira GranBio projeta que uma fábrica de 400 milhões de litros de SAF à base de biomassa, como resíduos de madeira e cana, custe hoje cerca de 2 bilhões de dólares, incluindo a obtenção de matéria-prima.
“É um investimento pesado”, disse o diretor do Centro de Controle de Operações da Gol, Eduardo Calderón. “E fazer uma biorrefinaria demora três, quatro anos desde o projeto básico até você colocar ela de pé para funcionar.”
Outros materiais também podem ser utilizados, como gordura animal, sebo bovino e óleo de cozinha usado.
Os resíduos de cana e etanol, no entanto, ainda parecem ser a melhor opção para o Brasil, que pode se aproveitar de sua infraestrutura e expertise inclusive para produzir etanol de segunda geração e a partir dele, o SAF.
Conhecido popularmente como etanol 2G, ele é feito de resíduos restantes do processo de fabricação do etanol comum e açúcar, pode ser carbono negativo e não requer que necessariamente mais áreas sejam plantadas para produção.
O etanol de primeira geração, por sua vez, é produzido a partir de cana ou de cereais, como milho e trigo.
O Brasil, maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, normalmente processa mais de 600 milhões de toneladas de cana por temporada, fabricando mais de 35 milhões de toneladas de açúcar e 30 bilhões de litros de etanol.
“Solução Excelente”
De acordo com a Embraer, que possui uma parceria em SAF com a Raízen, 1,7 litro de etanol 2G é suficiente para produzir 1 litro de SAF, o que representa uma boa oportunidade para o Brasil exportar um produto de alto valor agregado.
“É uma solução excelente”, disse Gomes Neto. “Ele é feito do bagaço da cana, que é uma matéria-prima aceita na Europa, em todo lugar. E aqui a gente pode produzir isso em grandes quantidades.”
A Raízen afirma estar pronta para atender à demanda por etanol para produção de SAF. Em outubro, a empresa deu início à produção em sua segunda unidade de etanol 2G no Brasil, com planos para concluir mais duas em 2024 e outras duas em 2025.
Raízen, Copersucar e BP Bunge Bioenergia já obtiveram certificação internacional para a produção de SAF à base de etanol, enquanto outras empresas — como a Atvos — afirmaram também estar de olho no setor.
“A solução para transição energética não se fará por um único caminho, são várias rotas”, disse o diretor comercial da BP Bunge, Ricardo Carvalho. “Mas o etanol da cana-de-açúcar é a solução que o Brasil já tem disponível, com escala, pronto para utilização e com potencial para diferentes aplicações.”
Nelson, da Boeing, disse ver a possibilidade de que ao longo do tempo a produção de etanol avance gradualmente no sentido de suprir a indústria de aviação, uma vez que o setor automotivo também tem passado por sua própria transição energética.
“Comparando com hidrogênio e eletricidade, isso aqui requer muito menos investimento”, afirmou o executivo. “Para ser sincero, levando em conta a nossa licença social na aviação, a gente não tem qualquer escolha. A gente tem que fazer isso.”
Desafios para as aéreas
Os altos preços e a produção limitada, no entanto, ainda geram grande preocupação nas companhias aéreas locais, que têm entrado no coro por políticas públicas favoráveis à implementação do SAF sem que o custo de voar dispare.
Hoje, combustíveis representam cerca de 40% de todo o custo de uma empresa aérea — e o SAF, embora visto universalmente como fundamental para a descarbonização, tem valores até cinco vezes superiores ao do combustível de aviação convencional.
“O Brasil precisa de um marco regulatório com regras claras e coerentes, segurança jurídica para investimentos, além de incentivos e tributação adequados”, disse à Reuters a diretora de sustentabilidade da Latam Brasil, Maria Elisa Curcio, que reconhece que desenvolver a indústria do SAF na própria região será uma vantagem competitiva para o setor aéreo local.
“(Mas) em busca de uma indústria mais verde, não podemos provocar um aumento forte do preço das passagens a ponto de tornar a aviação proibitiva para a maior parte da sociedade.”
As principais linhas aéreas do país — Latam, Azul e Gol — são unânimes ao citar os custos elevados e a produção reduzida como desafios-chave a serem superados na cadeia do SAF.
Ao mesmo tempo, também destacam a necessidade de se utilizar outros mecanismos de descarbonização de curto prazo enquanto esses obstáculos não são vencidos.
Entre eles está a renovação de frota e sistemas, com uso de aeronaves mais econômicas, e a compensação das emissões por meio de créditos de carbono.
“Quando a gente olha um curto prazo, de hoje para os próximos anos, o nosso foco é na eficiência operacional, eficiência em voo, encurtamento de rotas. É aqui que a gente consegue montar a descarbonização imediata”, afirmou Diogo Youssef, gerente executivo de eficiência da Azul.
Algumas gigantes do setor, como a Qatar Airways, já externaram receio de que as metas de 2050 possam não ser batidas devido à oferta reduzida de SAF e ao fato de outras alternativas, como o hidrogênio, ainda serem muito incipientes.
Essa preocupação também existe no Brasil.
“Hoje, se você olhar o que tem previsto de investimento ao longo dos próximos anos, realmente dá para ter a preocupação de que o mundo não tenha SAF suficiente pra poder atingir essa ambiciosa meta”, disse Calderón, da Gol.
Ele defende a adoção de incentivos fiscais para o uso de SAF no Brasil de maneira similar à realizada pelos Estados Unidos, onde produtores de SAF são elegíveis para um crédito fiscal de 1,75 dólar por galão de combustível sustentável.
“Uma política de mandato pura e simples não nos parece que seja a solução mais inteligente para esse processo”, disse.
Mesmo na maior economia do mundo, entretanto, a produção ainda engatinha e deve chegar a 2,1 bilhões de galões (cerca de 8 bilhões de litros) em 2030, abaixo da meta de 3 bilhões definida pelo governo, o que reforça a necessidade de outras localidades contribuírem com o aumento de produção.
Nesse sentido, as aéreas também concordam com o alto potencial do Brasil no setor.
“A gente tem terra, tem sol, tem tecnologia, ou seja, a gente tem tudo necessário para ser um grande produtor de combustível”, disse Calderón. “Eu acho que no SAF a gente tem tudo para dar um show.”