“O patrimônio alimenta o ego, já o dividendo alimenta o bolso.”
Esta frase e suas variações infestaram as redes sociais. A razão? É simples: não tem aí nenhum termo técnico, jargão de mercado ou cálculo. É impactante e gera um belo engajamento, que é, de fato, o grande desejo dos proprietários das contas que a reverberam.
Que me desculpem aqueles que gostam de postar tal bordão, mas, em essência, ele é uma tolice como tantas outros a que o ser humano se sujeita em troca de likes e comentários.
A razão para essa frase ser uma tolice é simples: o dividendo não surge do nada, por um milagre dos céus. O dividendo é subproduto de um patrimônio.
Em outras palavras, você só tem dividendo se tem patrimônio. Ignorar a necessidade primordial da construção patrimonial é assumir que você quer ovos, mas não está nem aí para a construção do galinheiro e da lida diária com as galinhas.
Foi pensando nessa sanha desenfreada por dividendos, ouvindo esse tipo de frase com que abri este texto, que investidores e investidoras se deixaram seduzir por robustos dividendos que eram gerados por um conjunto de FIIs de CRI com perfil High Yield entre o quarto trimestre de 2020 e o começo de 2022.
O FII HCTR11, com gestão da Hectare e administração da Vortx, é um dos exemplos mais claros dessa situação. Para além da fotografia, ou seja, da situação atual do FII, onde boa parte dos seus 203.874 cotistas, com base no informe mensal de agosto de 2023 (guarde este número), estão um tanto quanto resignados com a queda apresentada pelo FII de 66% nos últimos 12 meses (considerando o fechamento de 11/10/2023) e redução do dividendo mensal para o patamar de R$ 0,40 por cota na média dos últimos seis meses, vamos observar algo pouquíssimo comentado sobre tal FII que ocorreu justamente durante o período do dividendo mais elevado que “alimentaria o bolso” e gerou um dos maiores cemitérios de patrimônio na indústria.
Trata-se de algo pouco comentado porque, como bem sabemos, o cemitério é silencioso. As pessoas adoram ir aos fóruns e grupos de WhatsApp e Telegram para contar sobre aquele investimento bem-sucedido, mas se calam quando o tema é aquele erro crasso que, por vezes, consome o patrimônio de anos por conta da ganância.
Deste ponto em diante, por favor, faça a leitura com calma, atento ou atenta aos números. Isso será fundamental para compreender a mensagem que desejo passar. O fato de tratarmos os dados de forma cronológica deve ajudar. Eles tiveram como base informacional a Economatica e os relatórios gerenciais do HCTR11.
Ao final de julho de 2020, o FII tinha aproximadamente R$ 225 milhões em patrimônio e 18.057 cotistas. Este marco é importante. Note o que ocorreu com os dividendos distribuídos pelo fundo nos períodos subsequentes.
Entre maio e agosto de 2020, o dividendo mensal médio do HCTR11 foi de R$ 1,06 por cota. Já entre setembro de 2020 e março de 2022, a distribuição mensal saltou para R$ 1,87 por cota na média, um incremento de 76%.
A razão para essa escalada no dividendo? Aceleração na inflação. O IPCA acumulado de 12 meses em agosto de 2020 era 2,44%. Isso mesmo, um ano de inflação acumulada abaixo de 2,50%. Mas o cenário se deteriorou adiante, de sorte que, ao final de março de 2022, o IPCA de 12 meses acumulava alta de 11,30%.
Mais inflação em uma carteira de crédito atrelada à inflação, considerando a manutenção da adimplência dos devedores, automaticamente gerará mais dividendos. E no caso do HCTR11, ali em meados de março de 2020, 45% da alocação era indexada ao IPCA e 41% ao IGPM. O IGPM na sequência entregou um crescimento ainda maior do que o que vimos no IPCA, superando em dado momento a barreira de 30% no acumulado de 12 meses.
Ocorre que, nesta janela com indicadores de inflação mais elevados gerando maior rendimento em tais FIIs de CRI, a gestão do fundo aproveitou a euforia do mercado que se observa no descolamento entre cota de mercado e cota patrimonial que vimos ao analisar a curva da variável P/VP (preço de mercado sobre valor patrimonial da cota) e realizou sucessivas emissões.
Para “alimentar o bolso” com os dividendos, como pregado por alguns, investidores e investidoras ignoraram solenemente a variável que indicava preços elevadíssimos para a cota do FII no mercado secundário. Note como, ao entrar no período de dividendos mais robustos por conta da inflação mais elevada, o mercado aceitou pagar ágio (prêmio) de mais de 20% e, por vezes, superior a 30% no HCTR11. É como se a pessoa estivesse pagando R$ 130 em uma nota de R$ 100.
Sobre as emissões, na janela entre julho de 2020 e fevereiro de 2022, o HCTR11, que até então tinha realizado 4 emissões de cotas, que colocaram seu patrimônio em R$ 225 milhões, realizou outras 8 emissões, que alçaram o patrimônio para mais de R$ 2,6 bilhões, ou seja, um crescimento de 1.076% no tamanho do fundo.
O crescimento do patrimônio foi acompanhado pelo crescimento dos cotistas, que chegavam ao FII pelas duas frentes, no mercado secundário, pagando ágios exagerados não apenas para garantir os dividendos que estavam fortes por conta da inflação, mas também para garantir direito de preferência nas emissões.
Nesta janela das 8 emissões, o número de cotistas do HCTR11 saltou de 13.793 no final de junho de 2020 para 173.203 cotistas ao final de março de 2022, quando concluída a 12ª emissão de cotas do HCTR11, a oitava na janela em análise. Um crescimento de mais de 12,5x da base de cotistas.
Entre julho de 2020 e março de 2022, período da realização das 8 emissões, a cotação no mercado secundário oscilou entre R$ 115,01 (mínima) e R$ 161,80 (máxima), com média de R$ 132,30.
Os investidores que aderiram às emissões pagaram no mínimo R$ 115,59 (5ª emissão em julho de 2020), chegando a pagar até R$ 120,86 (8ª emissão em fevereiro de 2021).
Com tais informações, fica fácil imaginar por onde anda o preço médio dessa turma de quase 160 mil cotistas que chegaram ao HCTR11 nessa época.
O que aconteceu depois disso é história que tomou conta das páginas dos sites especializados e até mesmo de jornais de grande circulação. O dividendo do HCTR11 caiu, primeiro por conta da normalização da inflação, e muito me espanta alguém esperar algo diferente disso. O contrário seria torcer para que o Brasil convivesse com IPCA de 10% ao ano, uma insanidade.
Depois vieram os eventos de inadimplência e repactuação de parte importante da carteira de CRIs do HCTR11, que agrediram o fluxo de caixa e empurraram ainda mais para baixo o nível de distribuição mensal.
O valor da cota de mercado repercutiu com intensidade o que ocorreu com o HCTR11. Em 01/07/20, o HCTR11 encerrou o pregão cotado a R$ 129,90. Já em 11/10/23 a cotação de fechamento foi R$ 31,23, uma queda de 76%. Quando consideramos os dividendos recebidos ao longo deste período, a situação melhora, mas longe de solucionar a vida de quem quis “alimentar o bolso”. Na mesma janela, contando os dividendos recebidos, o HCTR11 teve queda de 48%, enquanto o Ifix apresenta alta de 13%.
O HCTR11 não foi caso isolado, outros FIIs com características similares tiveram trajetória parecida, variando o grau de intensidade. Mas esse grupo nem de longe representa o que é a indústria de FIIs.
Fundo imobiliário, quando bem selecionado, se mostra um investimento essencial em sua carteira diversificada para construção de patrimônio.
Hoje o HCTR11 tem mais de 200 mil cotistas. Alguns se juntaram àqueles 175 mil no 1T23 quando a cota estava sendo negociada entre R$ 80 e R$ 90, acreditando que estavam aproveitando uma ótima oportunidade. Já havia 211 mil cotistas ao final de fevereiro de 2023. Pois bem, como vimos, a cotação atingiu valor próximo a R$ 30.
O objetivo aqui não é fazer exercício de futurologia. Vai subir? Cairá ainda mais? A leitura dos relatórios gerenciais do FII em questão revela desafios hercúleos para o time de gestão.
A bem da verdade, trouxe apenas um exemplo da cegueira que essas frases de efeito podem gerar nos investidores e investidoras. Não foram poucos os relatos que ouvi de pessoas que colocaram economias de anos, décadas, no referido FII e agora não sabem o que fazer. Afinal, o tal dividendo que alimentaria o bolso rareou, e rareou justamente porque o pilar principal, aquele que alimentaria o ego, foi colocado em segundo plano.
Foque em construir um patrimônio de qualidade. Ao longo dos anos, você verá que ele será capaz de gerar ótimos dividendos.
De fato, o patrimônio alimenta o dividendo e ambos alimentam a sua paz. A próxima vez que você ouvir a frase que abriu este artigo, note que provavelmente o autor já está com seu ego muito bem alimentado com vultuoso patrimônio. A sobremesa para o ego deve ser o desejo de ver frases ganharem engajamento nas redes sociais.
Não quero te ver como boa parte dos mais de 200 mil cotistas do FII citado aqui, que estão em profundo silêncio depois de tentarem alimentar o bolso com dividendo e virem seus patrimônios definharem.
Um grande abraço,
Ricardo Figueiredo
É analista CNPI, especialista em fundos imobiliários da Spiti. Bacharel em Economia com especialização em Mercados Financeiros e MBA em Gestão Financeira e Atuarial, começou a carreira como professor na área de tecnologia. Migrou para mercado financeiro, no qual atua há cerca de 20 anos. Entre 2003 e 2021, passou pela área de investimentos da Vivest, maior fundo de pensão de capital privado do país. Realizou análise e gestão de investimentos em imóveis e carteira de fundos imobiliários, que totalizavam mais de R$ 1,2 bilhão.